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HELOÍSA HELVÉCIA
free-lance para a Folha de S.Paulo
Rufus é um sujeito que abusa de citações, palavras incomuns e jargões, mas não tolera nada disso no discurso dos outros. Por meio de Rufus, personagem do recém-lançado "Diário de um Fescenino", o escritor Rubem Fonseca descreve o truque do "psitacismo", que, segundo o dicionário, é uma arte e um método: a arte de construir frases ocas à maneira do papagaio; o método de adquirir conhecimento pela fixação na memória, sem a intervenção da inteligência.
Ilustrações Klebs Junior
Jargão é uma coisa para uns, outra para outros. "Antigamente, jargão era a gíria dos marginais, mas, até hoje, há estudos nos quais a palavra é usada como sinônimo de gíria. Há uma confusão grande", afirma Dino Preti, professor titular de língua portuguesa da PUC-SP e coordenador científico, na USP, do Nurc (Núcleo de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta). De acordo com ele, jargão é a "linguagem científica ou técnica banalizada". Por definição, é uma forma de falar inadequada à situação. "A pessoa quer se promover, mostrar que fala uma linguagem que o outro desconhece, o que disfarça uma ignorância."
É fácil apontar o jargão dos outros, difícil é viver sem um. Do telemarketing ao ministério, da mecânica ao magistério, toda atividade tem vocabulário próprio. Cada especialista recorre à sua "rebimboca da parafuseta" ou à sua "política fiscal contracíclica". Então, por que a censura? "O jargão tem um sentido mais pejorativo nos meios acadêmicos, mas, na verdade, a própria academia o usa muito", diz Preti.
No livro "Línguas e Jargões" (Editora da Unesp, 1996), o historiador Peter Burke explica como o conceito sofreu alterações desde a Idade Média. No início, a palavra descrevia o gorjeio das aves e também a fala incompreensível, um gargarejo: "jargon", em francês, e "gargle", em inglês, saem da mesma raiz. Ao se espalhar de uma língua para outra, o termo ganhou o sentido de gíria de submundo e só passou a designar as linguagens técnicas a partir do século 19, com o surgimento de profissões, quando grupos de novos especialistas começaram a marcar seus territórios temáticos, criando jeitos próprios de falar.
O personagem Rufus, do romance de Rubem Fonseca, não tem paciência para a "cantilena eivada de frases latinas" de seu advogado. Não por gosto, mas por necessidade, a funcionária pública Clóris Castillo, 50, pacientemente transpôs a "incomunicabilidade" jurídica. Durante um processo de separação, ela aprendeu que "incomunicabilidade" é uma cláusula para impedir que um bem seja dividido com o marido ou com a mulher do herdeiro beneficiado. "Você até deduz o significado de algumas expressões, como 'impenhorabilidade', mas, em geral, eu vivia cheia de dúvidas, fragilizada. Tinha de pesquisar e me virar." Em oito anos de litígio, ela buscou esclarecimento onde pôde. Ia até o fórum, lia, estudava os termos jurídicos. "Não quero generalizar, mas os advogados com os quais tive contato falavam de um jeito arrogante. Não explicavam muito, não."
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Não há campo que use mais palavras desnecessárias que o das leis, na opinião do advogado Rui Fragoso, 47, da comissão de ensino da OAB-SP. Ele diz que o uso pernóstico do português é tão anacrônico quanto o anel da advocacia —embora o ensino de direito ainda não reflita mudanças. "O advogado deve ser moderno e confiável. O jargão só inspira confiança nos incautos." Fragoso afirma que ainda se verifica um excesso de expressões em latim e brocardos (aqueles provérbios jurídicos), quando a meta é clareza e concisão. "A pretensa erudição esconde a ausência de conhecimentos da língua e de argumentos. Sentença ou petição boa é aquela que o leigo entende."
Em outro campo, o da medicina, a situação não é muito diferente. Pacientes que "não entenderam nada" que o médico disse representam a principal queixa feita no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, segundo a presidente, Regina Carvalho. A falha na comunicação, diz ela, é um efeito da linha americana, que revolucionou o ensino médico no mundo todo, a partir dos anos 20, introduzindo as normas de comportamento, a roupa branca, a visão tecnicista e a linguagem de especialista. Para devolver uma abordagem mais ampla à profissão, o conselho vem propondo reformulações nos currículos das escolas, como a volta de matérias humanísticas [Leia mais aqui LINKLINKLINK]. "O profissional ganhou credibilidade com essa postura mais técnica, mas perdeu empatia. As novas diretrizes se preocupam com a linguagem, que dificulta a relação entre médico e paciente", afirma.
Há muitos léxicos dentro da medicina —óbvio, em um campo tão complexo e com tanta subdivisão. "Acontece até mesmo de dois colegas de especialidades diferentes não se entenderem", diz o cirurgião plástico Alberto De Luiz, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Ele considera um dever traduzir conceitos no diálogo com o paciente, mas acrescenta: "Um sinal de desenvolvimento humano é a capacidade de dar nomes às coisas. O jargão é natural, há termos científicos que não têm sinônimos precisos".
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Isso foi comprovado numa pesquisa feita na USP. O grupo de estudos linguísticos pediu a bioquímicos que descrevessem experiências, primeiro no vocabulário próprio, depois de forma simplificada. "Os especialistas não conseguiram narrar certos experimentos em linguagem comum. Algumas noções são inseparáveis de sua linguagem científica", conta Preti.
Nenhum problema, portanto, com o vocabulário especial. O problema é o uso mal-intencionado, afirma ele. "O jargão nasce quando essa linguagem é vulgarizada, quando há pedantismo, pretensão, quando alguém usa 'palavras difíceis' para mostrar superioridade intelectual. É um signo identificador, mas, hoje, tem essa marca negativa, é um falso identificador. Comparo o uso do jargão àquelas pessoas que passam a colocar vocábulos estrangeiros na conversação. É uma situação social curiosa: faz o interlocutor emudecer, perder a face", comenta.
O educador Arnaldo Niskier, da Academia Brasileira de Letras, tem outro ponto de vista. Entende por "jargão" tanto a linguagem técnica como a popular. "O jargão nasce e se desenvolve a partir de uma verdade do povo. Os defensores da norma culta não podem criticá-lo nem dizer que é destituído de um procedimento cultural. Num país pobre, sem escola e sem acesso a livros, proibir também as formas de falar seria um ato criminoso contra a cidadania." Na visão de Niskier, se um termo científico não é absorvido pela maioria, não é jargão. "Jargão é o que 'pega', é o bordão que todo mundo entende." Ele considera que esses grupos de vocábulos produzem uma preguiça mental. "A pessoa fica naquilo, usa 'ad nauseam', para citar apenas um..."
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Quando termos e expressões são repetidos como mantras, quem os escuta perde a chance de se deter para refletir e esmiuçar significados. "O clichê está pronto. A pessoa pega a palavra do começo, a do meio e a do fim e compõe frases padronizadas para qualquer situação. É como quem responde 'vamos estudar o caso' ao seu interlocutor quando, na verdade, não vai fazer coisa alguma", afirma o professor de língua portuguesa Pasquale Cipro Neto, colunista da Folha de S.Paulo.
Não há rodeios linguísticos como os dos eufemismos do economês contemporâneo, quando o calote é suavizado como "default" ou, pior, quando o aumento de preço é rebatizado de "reparametrização". "O eufemismo faz parte da cultura brasileira", lembra Maria Otília Bochini, 59, do Núcleo de Jornalismo e Cidadania da Escola de Comunicações e Artes da USP. O talento nacional para arrumar um jeitinho de dizer as coisas ficou mais evidente quando as sucessivas crises puseram os economistas na berlinda.
Inflação inercial", conceito que tenta justificar a inflação do presente em razão da passada, foi a expressão que mais feriu os ouvidos do economista Antonio Lanzana. "Essa criação brasileira empresta um termo da física, o que virou moda em economia. Mas como explicar com a inércia um movimento de preços? Por princípio, é impossível", diz.
Lanzana é autor de "Economia Brasileira - Fundamentos e Atualidade" (Atlas, 2001), leitura para não iniciados. Professor da USP, ele dá cursos de MBA, enfrenta salas de aula com profissionais de diferentes áreas e está acostumado a falar sem usar a língua da ordem secreta. "A tradução exige o domínio completo de um conceito, mas é possível usar terminologia acessível sem perder profundidade." Para quem quiser se irritar menos ao ouvir algum sábio na TV apostando que "vai dar um down de 25 bases point na reunião do Copom" (previsão de queda nos juros de 0,25%), ele sugere o investimento em livros de economia escritos em bom português.
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"Um dos indicados é "Traduzindo o Economês" (Best Seller, 2000), de Paulo Sandroni. Para o autor, economista e professor da PUC e da FGV de São Paulo, é ilícito usar "banda diagonal endógena" para explicar coisas importantes a milhões de pessoas. "Há uma forma quase fraudulenta de tratar assuntos públicos. A linguagem vira arma, escolhida com a intenção política de mascarar, e não de esclarecer", diz. Ele afirma que a motivação maior para traduzir economês foi um trauma pessoal. Vinte anos atrás, ao escrever sua primeira obra, teria exagerado na linguagem acadêmica. "Meus colegas brincavam, diziam que o quarto capítulo do livro era usado em hospitais, para fazer dormirem os pacientes mais agitados do setor de neurologia", lembra.
A platéia pode não dormir, mas costuma perceber quando o orador fala difícil só para impressionar. "Não vejo problema no uso do jargão. O problema é a artificialidade do discurso", opina Reinaldo Polito, 52, professor de expressão verbal. "O critério é sempre o da naturalidade. O melhor vocabulário é aquele que, sem descer à vulgaridade, funciona para o grupo ou para diferentes níveis de educação e formações."
Se é fácil falar difícil, complicar a escrita é "baba". Basta construir períodos extensos para confundir o leitor, uma vez que pesquisas de psicolinguística mostram que só se fixam frases com até 22 palavras. "Esse é um tempo de complicação linguística. Os modismos se reproduzem como coelhos, e há um exagero de textos incompreensíveis, que alijam as pessoas", diz Maria Otília Bochini.
"Como pode um posto de saúde distribuir um alerta contra a dengue que começa com 'Aedes aegypti'?", a professora exemplifica e, antes que argumentem contra, rebate: "Dizer que simplificar é banalizar é coisa de gente preguiçosa, porque dá mais trabalho explicar sem usar palavras técnicas. Textos de contratos, comunicados oficiais e informativos dos quais as pessoas dependem para tomar decisões precisam ser claros".
O informatiquês não é problema para o músico e suporte de informática Heron Martins Silva, 46. Acostumado a dar treinamentos e aulas particulares, ele desenvolveu, para ser claro, seus próprios truques didáticos. "A pessoa teme ser enganada e é obrigada a confiar na nossa palavra. Tento simplificar buscando comparações que aproximem o computador do universo de interesses do aluno, do seu campo de domínio ou do seu mundo emocional e sensorial. Quem opera na frequência do jargão é inseguro, usa o poder para evitar a crítica. É um jeito de se defender para não ser atacado."
Inconscientemente, ninguém quer explicar nada, e sim preservar seu poder por meio da linguagem, de acordo com Sírio Possenti, autor do livro "Os Humores da Língua" (Mercado de Letras, 2002). "A bula de remédio, por exemplo, não é feita para informar, mas para cumprir uma lei que manda informar", diz esse professor de linguística da Unicamp. Ele chama a atenção para o fato de que a língua serve menos para a comunicação e mais como marca social. "Quanto mais dividida é uma sociedade, mais diversidade de línguas ela vai apresentar. Por meio do léxico, os grupos criam laços com seus pares e separam os diferentes. É um jogo de poder, mas o que não é?", pergunta.
Nesse jogo, vale a estratégia do polvo, que, quando acuado, solta sua tinta para deixar a água turva, confundir os peixes e se safar. A comparação é de Vito Giannotti, 58, ex-pescador, pesquisador de movimentos sociais e uma espécie de inimigo número um do sindicalês. A linguagem sindical, diz, é resultado de um liquidificador em que foram misturadas todas as "pragas do apocalipse": um pouco de juridiquês, outra dose de economês, intelectualês, politiquês.
"As pessoas se contaminam, pegam palavras que, para elas, nada significam e vão tascando no discurso. É uma coisa ridícula, há epidemias de 'emblemático', 'cenário', 'falácia', 'interface' etc.", diz. O paradoxo, aponta, é o fato de um discurso que pretende atrair as massas acabar sendo incompreensível para a maioria. "O jargão funciona como uma grande muralha", afirma.
Giannotti coordena o Núcleo Piratininga de Comunicação, no Rio, entidade que assessora o movimento sindical traduzindo informações e fazendo a patrulha do sindicalês tanto em boletins e jornais como na linguagem oral. "Não se sabe conversar, só debater. É preciso sempre 'pegar um gancho', 'fazer uma colocação' ou 'abrir' uma 'discussão substancial', e o coitado do trabalhador leva anos para saber que substância é essa", diz.
A fala do presidente Lula é, segundo Giannotti, um bom exemplo de como é formada essa linguagem mais política. "O discurso dele reflete toda a trajetória de 30 anos e a convivência com os mais diferentes níveis linguísticos. A cada contato que faz, Lula aprende no mínimo dez palavras —e vem usando adequadamente a maioria delas. Mas não há como não engravidar pelo ouvido. Ele só deveria evitar expressões de quem estudou em Paris, como 'en passant'."
Para o professor Possenti, da Unicamp, a crítica aos jargões é romântica, uma espécie de utopia pré-Babel. "Não dá para falar de linguística sem usar jargão. Um aspecto constitutivo de qualquer saber é uma linguagem própria", afirma Possenti. Segundo ele, é ingenuidade tentar combater as divisões sociais começando pela língua. "O problema é a mídia ouvir o economista sobre a alta de juros, em vez de ouvir o feirante", argumenta. Economista usa jargão, feirante usa gíria, mas a diferença entre os dois fenômenos linguísticos é menos científica e mais baseada no status, segundo ele. "Na verdade, é uma distinção social. Jargão é a gíria dos bem-postos, e gíria é o jargão dos despossuídos."
Embora entenda o jargão como um instrumento de exclusão, Dino Preti é avesso ao preconceito linguístico. "Não existem mais linguagens puras ou padrões melhores ou piores. O que existe são variações. A linguagem culta é ideal em certas condições e, em outras, não. Até palavrão é ideal algumas vezes." O falante culto, afirma, não é o que conhece a gramática, mas o que sabe se adaptar às variações de linguagem, de acordo com cada situação. "Uma coisa é o especialista usar 'deletar' entre colegas, outra é ostentar o fato de ser um técnico em computação."
No fim, o importante mesmo é a comunicação. Nessa hora, muitas vezes, vale mais ouvir que falar.
Colaborou Heloísa Vianna, free-lance para a Folha de S.Paulo
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