Em 1995, a imprensa anunciava: 1 em cada 5 famílias brasileiras era chefiada por mulheres, que acumulavam o trabalho fora de casa e a educação dos filhos. Elas assumiam a função de pai e mãe dentro do lar. Coisa antiga, não? Desde os tempos coloniais muitas mulheres se viam nesta situação. Só que, antes, o hábito não era contabilizado. Segundo reportagem da revista Veja na época, as Famílias Chefiadas por Mulheres (FCM) estavam em toda a parte. Desde a profissional de tailleur azul-marinho à empregada doméstica, a maior variação ficava por conta da geografia. No Rio de Janeiro, a porcentagem de mulheres chefes de família era maior do que a média nacional: 25% das residências, situação semelhante à que se observava, à época, nos Estados Unidos. Ainda assim, sua presença era cada vez mais comum no Brasil inteiro. Em 1970, por exemplo, totalizava 13%.
Sociólogos, antropólogos e historiadores constatavam a mais espetacular modificação na forma de estruturação da vida privada desde a Idade Média, quando se consolidaram os pilares da família atual no Ocidente: monogâmica, nuclear. As FCM confirmavam: mulheres não se conformavam mais com as misérias e os sofrimentos de um casamento que não deu certo; punham um fim e seguiam em frente, no esforço de encontrar a própria felicidade.
“Há 25 anos, a mulher separada era considerada uma prostituta pela sociedade, e os filhos, apontados como crianças necessariamente problemáticas na escola. Muitas mulheres se mantinham casadas só para evitar o estigma da separação”, sublinhou o advogado paulista Sérgio Cruz Filho.
A realidade desmentia até mesmo a lenda de que filhos longe do pai teriam desempenho escolar ruim. Uma pesquisa feita na região metropolitana de São Paulo mostrou que os filhos de FCM de classe média tinham desempenho até melhor do que o das crianças com o pai em casa, pois as mães seriam mais exigentes consigo mesmas e com a prole. Segundo dados do IBGE, em 1985, houve 76.000 separações judiciais e a homologação de 36.000 divórcios. Considerando que no Brasil cada casal tinha em média 4 filhos, estima-se que só naquele ano o número de filhos de pais separados tenha alcançado o número de 440 mil crianças.
Os anos 1980 assistiram ao declínio da nupcialidade, ao aumento das uniões informais e à formalização das separações. Demógrafos lembram que a crise econômica, então, interferiu no comportamento dos casais. A nova Constituição de 1988 passou a facilitar os divórcios; não mais se exigia que as pessoas permanecessem juntas depois de ter acabado o amor. Também era cada vez mais raro evitar uma separação pelo temor de que era preciso pensar nos filhos, não só porque todas as crianças, sem exceção e desde o primeiro ano de idade, tinham pelo menos um amiguinho cujos pais já haviam se separado, o que as poupava de se sentirem segregadas, mas também porque era difícil acreditar que ser criado no interior de um inferno conjugal pudesse fazer bem a uma criança.
As taxas de divórcio, que marcaram o desfecho dos casamentos, provavam que cada vez menos a religião ou as tradições familiares tinham o poder de interferir na vida pessoal das brasileiras. Uma conclusão parecia inevitável: sinônimo de maior liberdade, a metamorfose da família podia ser contabilizada na coluna dos ganhos sociais. E isso era recente, num país onde o divórcio só foi aprovado em 1977. Outra mudança notável: deixara de ser vergonha, e ao contrário tornou-se quase uma exigência que a mulher tivesse o seu lugar ao sol no mercado de trabalho. Ambas as mudanças – aumento do divórcio e participação da mulher no universo profissional – estavam muito relacionadas.
“Nas famílias latinas, que marcam a nossa cultura, o pai é o defensor da honra da mulher. Na ausência dele, é o irmão. Na hora de brigar no condomínio, na oficina mecânica, de alugar um apartamento, uma mulher descasada tinha, até há bem pouco tempo, dificuldades imensas”, explicou a cientista social Maria Coleta Oliveira, do Núcleo de Estudos Populacionais da Universidade de Campinas (UNICAMP). “Hoje, isso está mudando nos grandes centros urbanos uma vez que as mulheres estão se inteirando de que podem conquistar espaços que não existiam antes”. Poucas mulheres com mais de 50 anos logravam se casar com homens com menos de 25.
Ainda segundo a reportagem da revista Veja, alimentado e bem servido, o marido costumava ir embora quando fazia um bom progresso na carreira. Por coincidência, era quase sempre nesse ponto que ele concluía ser um tédio o seu casamento e resolvia se interessar por mulheres mais jovens. Na esmagadora maioria dos casos, informaram os advogados especializados em apartar casais em litígio, uma separação começava quando ele arrumava uma amante. Como ganhava pouco – ou não ganhava nada, pois cuidar da ninhada e pilotar o fogão sempre fora sua tarefa sagrada –, a esposa, já envelhecida, precisava arranjar um trabalho. Doravante, não teria ajuda nem para trocar uma lâmpada. Entre mamadeiras e lição de casa, a babá que não vinha e o almoço que não ficou pronto, era bem mais difícil encontrar um 2º marido, mesmo porque agora a urgência era arrumar um emprego. Enquanto isso, o marido, mesmo barrigudo e careca, muito menos vigoroso, estaria livre, desimpedido e com algum dinheiro no bolso para encontrar alguém capaz de chamá-lo de “gato”.
“O homem não esquenta lugar no mundo dos solitários”, afirmou a demógrafa Elza Berquó, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Para elas, contudo, tão delicado quanto a separação era o ritual que levava uma mãe a apresentar o novo namorado aos seus filhos. O cuidado se explicava pelo temor de que o novo marido obrigasse a mulher a diminuir a atenção que prestava às crianças, que já não podiam contar com a presença do pai. Havia ainda o receio de que um 2º casamento não desse certo, quando então, vencidas as barreiras iniciais, os filhos teriam de passar por uma segunda perda afetiva.
Nessa época, um abismo separava a condição de ex-casados. Não se condenava, e até se estimulava, que o ex-marido competisse em festas para levar uma medalha de dom-juan para casa. A ex-mulher que fizesse fama como caçadora, entretanto, seria apedrejada pela vizinhança. Graças às separações, os custos subiam e o padrão de vida caía. Segundo uma pesquisa da Fipe/USP, quando o marido saía de casa e ia morar sozinho, todos se tornavam 25% mais pobres. Caso o marido tivesse outra mulher para sustentar, a queda chegaria a 35%. Se houvesse outros filhos, o arrocho seria de 50%. Quem tinha de correr atrás do prejuízo era a mulher. Se não trabalhava, iria procurar emprego. Se fizesse meio período, teria de cumprir uma jornada inteira. Mesmo que o marido lhe pagasse uma pensão de 50% sobre seus vencimentos, o que era raro, na pura matemática do supermercado e da mensalidade escolar seria ele o menos prejudicado.
Bem mais dramática era a situação das mulheres chefes de família que se encontravam do lado de baixo da pirâmide social brasileira. Ali também se operava a mesma mudança nos costumes que agitava as camadas altas, porém com uma diferença: não foram os costumes liberais que colocaram o Nordeste como sendo a 1ª região do país em número de FCM; foi a miséria, que empurrou os maridos para longe, em grandes fluxos migratórios, para onde partiram sozinhos, deixando mulheres e filhos para trás. Tal como no passado, mulheres pobres sempre se ajudaram: umas com mantimentos, outras com vestuário, outras ainda com o bujão de gás. Esse matriarcado na pobreza não supriu todas as necessidades, mas sem ele a degradação teria sido maior.
Artigo de opinião da historiadora Mary del Priore
http://ditadosereflexoes.blogspot.com.br/2015/02/mulheres-chefes-de-familia.html
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