Era pra ser uma encomenda como outra qualquer. O sujeito chegou em casa, apanhou a esposa com outro na cama, rolou uma discussão, apareceu um revólver, seis tiros, e tudo acabou com dois corpos assassinados e o de um suicida no mesmo quarto. Ou seja, serviço de rotina. Mas não quando acontece com três talentosos advogados de um dos mais caros escritórios do país. Aí o que era pra ser simples torna-se uma puta duma ROUBADA.
— Vamos lá, os três me acompanhem até o inferno, por favor.
— Protesto! — disse a mulher colocando os óculos e tomando a frente — Eu não vejo por que devo acompanhar o ilustre representante do passamento alheio até as profundezas. Sou uma vítima clara das circunstâncias. Não vejo como pode ser-me imputada alguma culpa neste caso.
— Não? — Suspirei fundo e puxei meu surrado exemplar dos Dez Mandamentos autografado pelo próprio Moisés na noite de lançamento das tábuas. Li o sétimo, “Não cometerás adultério”. Guardei o livro de volta no bolso e já fui empurrando os três pra fora — Vamos logo que à noite o trânsito pro inferno sempre piora.
— Sem pressa, por favor, meu nobre e implacável ceifador — disse ela de forma tão educada que até me senti prestigiado — Até onde nós sabemos, os Dez Mandamentos são leis divinamente expressas por Deus para quem está sob sua jurisdição. Se você verificar meu histórico verá que sou atéia, nunca recebi nenhuma espécie de batismo religioso, e sou casada apenas no civil com o meu marido aqui de alma presente. Data venia, não vejo onde, como, e nem por que, esta lei possa ser aplicada a mim. Não procede.
Havia furos na argumentação, eu sei. Mas ela falou com tanta certeza e segurança que fiquei na dúvida. Ela tinha O DOM. Decidi que iria levá-la para o limbo até o caso ir para uma revisão posterior. Mas cinco minutos de conversa depois ela me convenceu a levá-la para o paraíso. Segundo ela conseguiria uma liminar em menos de uma hora para isso. Advogado bom é foda!
— Ok, vamos lá, tá decidido. — Eu disse — A mulher aqui vai para o céu. Já vocês dois vão suar os fundilhos nas thermas do capeta. Vambora!
— Protesto! — Disse o Ricardão da parada — Por que a nobre doutora vai para o paraíso e EU devo ser levado para o inferno?
Puxei o decálogo do bolso outra vez e li, já meio inseguro, o nono mandamento: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Fim de papo.
— Sim. Mas se a minha ex-amante está perdoada por não ser casada religiosamente com o seu marido — disse ele — então, logo, oficialmente, aos olhos de Deus ela não era a sua esposa. Correto?
— Correto… — concordei, já confuso.
— E se ela não era a mulher dele, logo não cobicei a mulher do próximo. Na verdade não cobicei nada de ninguém. Portanto, Data Venia, a pena máxima do inferno para todo o sempre não deve ser praticada no meu caso.
Até tentei falar alguma coisa, mas parei no meio, pensativo. Ele tinha razão. Resolvi que não iria levá-lo para o inferno também. E por uma questão de jurisprudência, iria encaminhá-lo para o paraíso junto com a mulher. Pareceu-me o mais justo a fazer na hora. Só me restava levar o marido traído para as profundas do sofrimento eterno. Claro que ele chiou. E muito.
— Por que só eu?! Os dois me traíram! Protesto veementemente!
Eu já estava muito cansado daquilo. Somente a boa educação deles fazia com que eu não perdesse a paciência de vez.
— Cara, por favor, não complica. Você assassinou e se suicidou. Se isto não for motivo pra te levar direto para o colo do tinhoso, o que mais pode ser? Eu sei o que estou fazendo, confie em mim, faço isso HÁ ANOS. Vamos embora!
— Só um minuto. É preciso levar em conta os meus antecendentes. Eu sou o único daqui que ia para a igreja todos os domingos!
— É verdade. — disse o Ricardão com um sorrisinho sacana no rosto. A mulher segurou um sorrisinho cúmplice.
— E eu estou sinceramente arrependido do que acabei de fazer. — continuou o corno — E quem se arrepende ganha, ipso facto, o reino dos céus, está na lei divina. Não é preciso frequentar a missa para saber disso. Todo mundo sabe como funciona!
Tentei argumentar que ele deveria ter se arrependido em vida, e coisa e tal, mas não consegui. O cara, além de conhecer vários versículos do Novo Testamento que embasavam sua defesa, era mestre na oratória. Os outros dois o auxiliaram e disseram que todos ali poderiam fazer um acordo geral em que ninguém sairia perdendo, todos iriam para o paraíso. Inclusive me garantiram que eu sairia como grande herói da história, algo que contaria pontos no futuro para a minha carreira no além, afinal, Deus adorava estas coisas de misericórdia, perdão, e tudo o mais. Fiquei MUITO tentado a ceder, mas percebi que aquilo precisaria da intervenção de uma instância superior. Mandei os três calarem a boca, peguei o celular, e fiz uma ligação direta para Deus.
Deus me atendeu impaciente como sempre. Expliquei toda a situação, todos os argumentos, que Ele ouviu concordando sem falar nada. Somente quando mencionei que os três eram advogados é que o Todo-Poderoso estourou.
— Advogados?! — berrou Deus — ADVOGADOS?! E você está ensebando pra mandar pro inferno POR QUÊ?!
No mesmo instante as três almas sumiram da minha frente e foram para o inferno sem escalas num piscar de olhos. Ainda deu tempo de ouvir o Criador soltando um “será que eu tenho que fazer tudo por aqui?!” e desligando. Fiquei meio ofendido, claro, mas relevei. Ninguém gosta de passar por incompetente.
Porém, uma coisa ninguém pode negar: Deus é um Cara prático pra cacete. Não chegou onde chegou à toa.
Fonte: http://diariodafoice.com/2010/09/18/dura-lex-sed-lex-sem-jontex/
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